Fartas
Lúcia chegou com mais de trinta minutos de atraso. Deixei nosso café marcado para as 16 h, foi uma trabalheira para deixar tudo pronto, mas eu já devia imaginar que isso aconteceria, e no fundo eu sabia por quê.
Tocou a campainha e antes mesmo de abrir a porta já podia vê-la sorrindo através do olho mágico. Entrou pedindo desculpas e falando de forma tranquila, como se nada de errado estivesse acontecendo. Ofereci um copo de água, ela sentou na poltrona, de modo que quando voltei da cozinha e sentei no sofá, ficamos frente a frente.
– Wanda voltou a mancar com a perna direita. Disse eu sem muita cerimônia.
– Eu percebi no Natal que ela não estava muito bem, o que aconteceu agora?
– Sinceramente não sei Lúcia, cada hora é um problema novo que ela inventa, não tem como saber dessa vez.
– Marta, sinceramente eu cansei de me preocupar com a Wanda, tenho minha família, meus problemas, não podemos ser babá dela a vida inteira. Uma coisa era quando éramos crianças e só tínhamos uma a outra, agora estamos com quase sessenta, e a Wanda é a mais velha.
Sua voz permanecia em um tom tranquilo, sem grandes alterações, porém, o pé esquerdo, balançava freneticamente enquanto sua perna permanecia cruzada.
Lúcia terminou lentamente de beber a água, depois fomos nos sentar a mesa.
– E você Marta, como está? Fiquei feliz com o convite.
Falou enquanto tentava se servir da primeira xícara de café, até desastrosamente deixar a colher virar, derramando pó sobre a mesa.
– Mil desculpas. Como estou distraída ultimamente.
Falou com a mansidão habitual, enquanto eu reparava seus dedos tremulando levemente.
– Que nada, limpo isso num instante. Mas como eu estava dizendo, a Wanda têm reclamado também de dor no joelho, disse que não está conseguindo andar como antes.
– Essa é a semana dela ficar com a Marlene, isso que me preocupada.
No rosto de Lúcia era possível ver um leve sorriso, enquanto seu corpo remexia na cadeira. Deu um gole generoso no café e começou a cortar a primeira fatia de bolo, e acrescentava umas fatias de frios no prato. Ela sempre gostou de misturar o doce e salgado, desde quanto eu podia lembrar.
_ Não se preocupa não, ela é adulta, e além do mais, quem está doente de verdade é a Marlene. Falou com a boca cheia, mas sem demonstrar muita preocupação. Porém, reparei que seus olhos enchiam de lágrimas. Ela também sempre foi assim, de transbordar sentimento pelos olhos.
– Me desculpa Lúcia, mas como somos as irmãs saudáveis no momento, achei por bem te contar o que estava acontecendo. Nós sabemos bem o que acontece quando a Wanda reclama deste bendito joelho, ela vai desmoronar a qualquer momento, e eu não sei se….
Lúcia limpou a boca com um guardanapo, levantou da cadeira impecavelmente, como uma Rainha sai de seu trono. Sacudiu a roupa, para retirar qualquer evidência de algum farelo que pudesse ter grudado no tecido. Olhou para o relógio e disse que tinha um compromisso, que precisava ir.
– Eu não acredito que você está fazendo isso Lúcia.
– Isso o que minha irmã, indo embora? Que mal há nisso, tenho minha vida para resolver.
– Não, o problema não é ir embora, é fugir da realidade.
– Não me confunde com a Wanda, falou sem levantar a voz. Mas suas sobrancelhas estavam arqueadas e os dentes cerrados. Ela sempre foi assim, a mais transparente das quatro.
– Tudo bem minha irmã, me desculpa, entendo que tenha seus compromissos. Obrigada por ter vindo. Amenizei a situação.
Lúcia soltou um grande suspiro e desfez a tensão do seu corpo.
Pediu para ir ao banheiro e enquanto caminhava, percebi pela primeira vez seu corpo envelhecido, com movimentos mais lentos, cabelos mais ralos, sobrepeso. Todas nós estávamos assim, uma pior que a outra. E de repente eu percebi, o que as palavras de Lúcia não diziam, mas seu corpo gritava. Que Wanda desmorone então! Estamos fartas.
Tiane Maga
Enviado por Tiane Maga em 31/01/2025