Cristiane Lemos - escritos
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível..." Clarice Lispector
Textos
Escombros
Carreguei dentro de mim um mundo que desmoronou. Durante anos, décadas, vivi com escombros para todos os lados. No começo nada enxergava. Apenas uma densa nuvem de poeira, que pairava no ar. Provas de um desmoronamento precipitado.
Um dia a poeira baixou, e pude então enxergar o cenário. Ruínas de um local sem espaço para ser habitado. Cidade fantasma. Carreguei em vão pedras, transportava de um lado para outro, sem saber ao certo o que fazer com elas. Concreto pesado. Colunas tombadas, com vigas que machucavam minhas mãos na tentativa de transportá-las. Tentei viver em meio ao caos. Era o que podia fazer naquele momento. Me adaptar a nova realidade que se configurava. Não havia restado nada inteiro. Apenas pedaços fragmentados. Quando tentava juntá-los, como em um quebra-cabeça, parecia mais que eu havia criado meu próprio Frankenstein. Pouco a pouco, fui entendendo mais sobre os caminhos dos labirintos e becos estreitos, que se formavam entre os edifícios tombados. Sabia os buracos que devia me enfiar, quando começava a tempestade. Não havia uma proteção muito segura, mas eu acreditava que, pelo menos, ali a chuva não me molharia. As memórias foram ficando distantes, do tempo em que a cidade estava de pé, e eu temia nunca mais conseguir reconstruí-la da forma que era. O tempo passava implacável, avesso ao tormento que esse esquecimento me provocava. Então registrei em mim uma cidade inteira, de pé, com luzes acesas e movimento, sem saber ao certo se era a mesma cidade que havia habitado. Receio que era mais deserta, mais silenciosa, com luzes mais apagadas. Mas esse novo cenário que se configurava dentro de mim parecia muito mais interessante. E desta forma, fui me acostumando aos escombros, pois não enxergava mais eles e sim o cenário que havia criado dentro de mim. Tudo parecia tão perfeito. Me agarrava cada vez mais a essa imagem fixada, e não dava mais atenção as rachaduras, aos deslizamentos, a falta de segurança. Deixei então que entrassem na minha cidade, certa de que o cenário que enxergariam era o mesmo que eu via, em minha fantasia. Ruas asfaltadas, construções robustas, casas aconchegantes, vilas, fábricas.
Pessoas entravam e saiam. Reviravam tudo. Algumas também se machucavam, outras tentavam me avisar que a cidade que eu habitava era bem diferente da que eu imaginava e me falavam que era impossível permanecer ali naquela bagunça. Então com muita força eu erguia novas construções, mas a base tão frágil, logo fazia tudo desmoronar em pouco tempo. Houve também as que sentiram raiva, por eu ter prometido uma cidade de pé, e oferecer uma desmoronada. Outras sentiam pena, quando eu me acomodava por cima dos pedaços tombados. Algumas eu expulsei, na maioria das vezes as que mais me ajudavam. Quantas pedras transportaram em vão. Eu pouco me importava em colocar aquela cidade novamente de pé. Estava farta e não sabia como ela seria, quando enfim reconstruída. Estava mais segura em minha cidade inventada, mesmo que nunca palpável ou permanente. Até enfim sucumbir, junto com ela. Olhar ao redor e não ver mais ninguém por perto. Todos estavam ocupados, construindo, desmoronando, cuidando, resgatando, suas próprias cidades. Fiquei ainda um  tempo ali parada, sentido pela primeira vez o luto da minha cidade tombada, sem defesa ou fortificações. Me despedi de cada pedacinho que ali habitava. Limpei tudo e me ocupei de uma nova construção. Alguns materiais foram reciclados, ressignificados, porém, com novos objetivos, uma nova arquitetura, um novo mapa, uma nova distribuição de espaço, outros tipos de fachada e interiores, outros prédios, outras casas. Há pouco tempo terminei minha primeira grande base. Tão forte e tão sólida. Estou me ocupando agora do jardim. Quero que a natureza faça morada em meio ao concreto. Um dia observei algumas borboletas se aproximando das primeiras flores que desabrocharam. Tenho muito o que fazer. Mais com cuidado e amor, logo logo uma cidade nova estará de pé e em pleno movimento.
Tiane Maga
Enviado por Tiane Maga em 11/03/2025
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