Eu sou a ampulheta. Estou geralmente em cima de mesas de escritórios, de contadores, advogados, engenheiros, entre tantos outros trabalhadores e trabalhadoras, que lutam diariamente pelo pão de cada dia. Também posso ser encontrada em algumas estantes nas salas, porém ninguém repara em mim. Primeiro, durante décadas, a televisão reinou soberana, objeto de desejo e atenção dos humanos e agora até mesmo ela anda esquecida, enquanto permanecem no sofá olhando uma tela bem menor, mas aparentemente mais interessante para eles, de um dispositivo que denominam celular. E assim, tanto eu como a televisão nos tornamos apenas objetos de decoração.  
É uma pena ficar sem serventia assim. Algumas vezes viro até mesmo peso de papel. Enquanto isso, interruptamente realizo meu ofício de contagem das horas, de forma quase artesanal. Os relógios mecânicos e vorazes os distraem e preocupam bem mais do que cada grão que cai.  Tenho a sensação de que comigo eles sentem que não precisam se preocupar, basta me deixar ali parada, por longos dias, meses, anos.  Até que alguém mais uma vez me vire de cabeça para baixo e assim a areia continua descendo pelo orifício estreito. Até que isso aconteça, sigo esquecida. Mas o tempo, esse, já devorou tanta coisa.