Água
Fixaram-se sob meus pés raízes ancestrais, que se potencializam conectadas e sugam a terra úmida em busca do sagrado líquido.
Caminho por essa terra com pés descalços, tentando com eles sentir a vibração quase silenciosa que emana do solo. Estamos quase coesas, eu e a terra, mesmo que sintamos um bloqueio que nos diferencia, uma barreira quase intransponível de diferentes mundos coexistindo, até que cai a chuva, que nos iguala e nos torna unas. Dilúvio de dentro para fora, que transborda a alma.
Tudo é tão intenso, que fujo, corro mata adentro, o suor inunda meu corpo, me liquefaço, assim caibo inteira nas entranhas terrenas, que silenciosamente me embalam e por fim, adormeço. Assim ficarei até ser transportada, nuvem serena pairando no ar, e seja eu a chuva, caindo com força, transformando a terra árida em rio, que passa. Com ele, sou levada até o mar.
E no mar faço morada. Não sou mais eu e a água, somos nós entrelaçadas. Lágrima salgada que eu tanto derramava, encontra abrigo na imensidão marina.
Meu corpo que antes boiava, é transportado ao fundo com total delicadeza. Não tenho medo. Misteriosamente, sinto que posso respirar, de uma forma diferente, agora sem depender dos meus pulmões para sentir o ar, entrando e saindo. Não sinto mais que estou me afogando. Não tenho o ímpeto de ir embora. E me deixo ser guiada em direção ao abismo marinho.
Nele, me misturo à fauna, que parece dançar ao meu redor, saudando a minha presença, não sou mais criatura estranha, mas pertencente, posso até mesmo ouvir os segredos que os corais escondem. A água está cada vez mais fria. O peso do meu próprio corpo desaparece. Minha pele emana um brilho suave que pouco a pouco vai se intensificando. Minhas pernas já não mais se encontram, um fio invisível as une permanentemente, criando um único membro mais alongado, uma cauda revela-se abaixo de minha cintura. Me sinto tão livre.
Não sei por quanto tempo estou aqui, talvez dias ou séculos. Tudo o que sei é sentir. E tudo que existe não é mais lá fora e sim aqui dentro. Até que de repente, uma sensação diferente, invade meu corpo, um arrepio percorre minha cauda até chegar a minha nuca. Há uma vibração diferente no oceano. Cardumes agitando-se, parecem desorientados. Alguns precipitam-se até a superfície. Não sei mais a sensação dos raios solares envolvendo a minha pele, por isso pouco a pouco um terror toma conta de mim, preciso novamente tocar a terra. Tudo parece tremer ao meu redor. Me sinto tão solitária.
Se eu não souber mais voltar para essa quietude total? Esse pensamento vago se infiltra em minha mente e uma nostalgia imensa já se aloja em meu peito, desse mistério profundo que me envolve até onde minha memória pode ir. Porém sinto que é um caminho sem volta. Instintivamente vou em direção a luz, acompanhando a transformação das águas turvas tornando-se cada vez mais claras e luminosas.
Metade do meu corpo enfim, emerge a superfície liquida, uma ruptura que envolve todos os meus sentidos. Percebo novamente o ar adentrando em meus pulmões. Em um primeiro momento sinto que irei me afogar, até que enfim, consigo controlar a respiração. Os sons ecoam por todos os lados, o vento soprando, as ondas batendo nas minhas costas, cantos de pássaros, os ecos que ressoam. Parece que minha cabeça vai explodir a qualquer momento.
Há uma força maior que me carrega. Observo um outro azul, agora do vasto céu acima de mim. Minhas lágrimas caem, o gosto do sal ainda tão vivo, não preciso sequer provar. O vento parece se enfurecer e traz com ele densas nuvens, que formam um manto cinza. O ar está pesado, carregado de eletricidade e raios iluminam a escuridão repentina. Enfim, as águas despencam como muralhas líquidas derrubadas com violência. Não há nada que detenha essa tempestade, que parece ter se formado com o único intuito, que a água doce e fresca, por fim repouse em águas salinas e profundas, até que possa enfim, ganhar outra forma. Mantendo o eterno fluxo de uma beleza selvagem e inextinguível.
As ondas agitam-se, ficando cada vez mais intensas. A correnteza serpenteia pelo mar, em uma fúria implacável, mostrando sua força. Só permanece nessas águas quem é convidado, quem precisa sair será levado, independente de sua vontade. E assim se sucedeu, as águas me levaram de volta a terra. O balançar do meu corpo chacoalhando nas ondas e eu sendo revirada quase que pelo avesso. Essa é minha última lembrança.
Vento
Sempre fui até a praia, raramente entrei no mar. Minha preferência é observá-lo. O que sinto vai além de conexão, carrego-o dentro de mim, onde quer que eu vá. De modo que sinto até mesmo o gosto de suas águas salgadas, sem que para isso eu precise me banhar.
Pode até parecer que seja isso, mas não tenho medo do mar. Tenho medo é do vento. Que tudo carrega, que chega sempre sem avisar. Sem ser convidado. Sem nos dar tempo para observá-lo. Por isso, a qualquer sinal que uma tempestade se aproxima, eu me abrigo, em lugar seguro.
Porém, não há para onde fugir, quando esse redemoinho se forma dentro do peito, criando caos onde havia um aparente sossego.
O vento é como um grito primordial da Terra, vindo de qualquer lugar. Das montanhas milenares, desertos, oceanos, geleiras cortantes, onde as águas se moldam em formas imaculadas.
Não sei o que mais me apavora no vento, saber que ele pode espalhar uma pequena faísca a ponto de torna-se chama sem controle, ou tudo o que ele pode levar embora, para nunca mais voltar.
No dia anterior, houve uma tempestade, que me fez querer ser criança novamente, só para ver se alguém me pegava no colo, mas não havia ninguém.
Eu estava só, naquela casa em frente ao mar. Fechei as cortinas, para não ver as ondas agitadas, agigantando-se com o vento. Por um momento pensei que invadiria a areia, derrubaria tudo pela frente e me levaria junto.
Foi uma noite de desassossego, pois por mais que eu evitasse encará-lo, parecia que o mar me chamava. No silêncio profundo, madrugada adentro, algumas vezes cheguei a ouvir meu nome. Era o vento soprando a janela. Trovejava como se tambores milenares fossem tocados com todo ímpeto. Ressoando dentro de mim.
As horas avançaram sem que eu percebesse. Não existe controle para as forças da natureza, assim como não há como deter o tempo. O sol rompeu a escuridão que parecia impenetrável. O vento cessou de soprar, abri as cortinas. O cenário estava bem diferente, estranhamente calmo. Meu corpo pedia descanso, mas o vento parecia ter chacoalhado dentro de mim, árvores adormecidas. Ele atravessou as suas copas, as folhas secas, seus troncos rígidos, suas raízes estendidas até o âmago do meu ser, regadas com sangue, suor e lágrimas. Mesmo tão revirada, me senti estranhamente viva e percebi que não era mais o vento, era o mar que realmente me chamava.
Porém, havia algo que ainda ressoava dentro de mim. O que eu tenho tanto medo que o vento leve embora? Tento responder há um bom tempo essa pergunta, que ecoa fundo e me cala profundo. Sem saber o que dizer. Medo não se escolhe. Aparece no breu da noite ou no dia mais solitário e frio, raptando nossa coragem. Muitas vezes é apenas uma máscara, que parece muito mais assustadora do que de fato é, e que encobre algo maior e muito menos subjetivo. É tão palpável que fica encoberto em um lamaçal escuro. Um pântano selvagem, repleto de caranguejos. E mergulhar nessas águas não tem prazer aparente. É enfrentar as maiores dores. Os segredos mais íntimos. Os ventos de lá são muito mais sombrios, sopram quase silenciosos. Chafurdar na lama, talvez seja preciso. Para enfim, eu descobrir, porque não quero que seja o que for que há escondido dentro de mim vá embora. Porque enquanto o vento sopra, a lama prende. Segura nossos pés, exige que sintamos seu peso, enfrentar o pânico de nos enterrar tão fundo a ponto de nunca mais conseguir sair. No fim, a lama esconde e revela. Um convite para tocar o que evitamos, sujar as mãos, ceder a luta contra a resistência densa. Um convite ao abandono de tudo que nos aprisiona.
Sozinha encarei pela primeira vez aquele espelho turvo. Uma água de mistura complexa, que só existe devido a erosão, decomposição de matéria orgânica e contaminação. Nem sempre a água é límpida. Essa tem tons terrosos e carrega em si o mistério de tudo que foi enterrado, de tudo o que já passou, mas ainda vive em suas partículas.
Quando enfim eu mergulhei, bailei com ela uma dança lenta e preguiçosa. Seu mover não é feito de fluidez. É uma água que se recusa a ser pura. O cheiro denso e a textura espessa, envolveu todo meu corpo. Até então, o peso de minhas memórias parecia um fardo insuportável. Mas quanto mais fundo eu chegava, meus movimentos pareciam dissolver a distância entre minha consciência e meus segredos. E assim, pouco a pouco, mesmo com os olhos fechados, parecia enxergar com total clareza um novo mundo que se revelava dentro de mim. Enfim, encarando minhas sombras, me tornei livre para escrever uma nova história e assim, pude vir a tona novamente. Que o vento levasse enfim, tudo que não servia mais, pois agora eu não mais me perderia de mim.
Encontro
Caminhei em direção a praia, a maré estava baixa, te encontrei assim deitada na areia, como repousando do espanto da vida e silenciando dentro de si um mundo que clama por movimento.
Titubeei de ir ao seu encontro. Não se desperta em vão a delicadeza de um sonho que foi capaz de romper a arrebentação e serenar em paz em uma manhã fria a beira-mar após uma tempestade.
Sinto a areia nos meus pés, estou descalça. Pouco a pouco vou em direção aquele corpo que parece mais uma miragem. Minha primeira sensação foi de choque, tentar entender como uma mulher havia parado ali, completamente nua. Seus cabelos volumosos e ainda úmidos da água, balançavam delicadamente com a brisa que soprava. Por alguns segundos, acreditei que estava morta. Mas observando fixamente, percebi os dedos dos pés que se moviam, assim como os músculos das pernas, em contrações involuntárias.
Quis o destino que eu estivesse ali naquele momento, mas sem saber como me aproximar de criatura tão misteriosa.
Minhas pernas que antes pareciam travadas pelo medo, caminham quase que mecanicamente, sem que eu me dê conta, do por quê. Não tenho o impulso de ir embora, muito menos de pedir ajuda. Naquele momento era como se algo sagrado estivesse acontecendo ali, como se aquele instante não pudesse ser interrompido por nada, como se existisse apenas nós duas no mundo.
Quando dei por mim, já estava agachada ao seu lado. Sua respiração ainda fraca, toquei suas costas frias, virei você de frente para mim, enfim vi seu rosto. Você abriu os olhos e se espantou com minha presença. Somos duas estranhas em um momento demasiado mágico. Porém, pouco a pouco nos reconhecemos, como se aquele encontro fosse uma mera formalidade. Havia milênios de identificação dentro de nós. Por isso não houve palavras, apenas um silêncio profundo que nos conectou.
Você toca minhas mãos e eu descubro porque estou viva. Pouco a pouco sua respiração volta ao normal. Você cambaleia um pouco ao tentar dar os primeiros passos. Como se tivesse esquecido em algum momento como se caminha em terra firme.
Você parece habituada a areia quente, com os pés descalços sem cerimônias e segue a passos firmes, em direção a beira d´água onde pode vislumbrar as ondas que quebram. Para você, elas são muito mais interessantes de observar do que a linha do horizonte ao longe. A água gelada parece beijar seus pés, fazendo um contraste com a quentura suportada pela sola. Você acha graça daquela sensação e gargalha.
Você se sente. Inteira, pertencente. Em êxtase. Você sente que as águas te chamam. Cantam para você. Você continua rindo, despudoradamente. Da vida, da praia, de mim. Que a essa altura me encontro novamente em pânico. E você está com aquele olhar, aquele olhar travesso de quem sabe o que faz e mesmo que no fundo não saiba, não pede permissão a ninguém. Desta forma você me convida a não ter medo. E eu sorrio, abrindo os braços, deixando que o vento que inicia, toque minha pele e balance meus cabelos.
Eu sei que a água te chama e você apenas seguirá o seu caminho. Cada vez mais mar adentro. Segura, que mesmo com a ânsia de manter os pés em terra firme, eu te seguirei, se preciso for, para além da rebentação.